O ESPELHO NA DEMÊNCIA
É como uma desconstrução da estrutura psíquica, onde o esvaziamento do sentido das experiências cotidianas e da noção de tempo vão se perdendo como se fosse uma parte de si mesmo fora de alcance. Perda gradual da própria identidade, chegando a não reconhecer sua própria imagem no espelho e apontar seu EU como um outro, situação que ocorre com certa frequência no Alzheimer, como recusa deste desencontro consigo mesmo.
Esta desconexão com a própria imagem no espelho na demência revela o desamparo que nos remete a constituição primordial do psiquismo humano no bebê, onde o outro que cuida é seu primeiro espelho, neste olhar que vem de fora reconhecendo para ele sua própria imagem inaugurando a noção do corpo.
Então além do espelho refletir sua imagem física, ele também te devolve a ideia que você faz de você mesmo, de qual é sua imagem perante o outro, que reflete a visão dos familiares, do grupo do trabalho, de um relacionamento afetivo sobre você. Na literatura o conto de Guimarães Rosa, " O espelho" diz: "O espelho, são muitos".
Uma essência para além da imagem, que mesmo diante da perda gradual da identidade do EU e do registro simbólico na demência, pode resgatar algo nas trocas subjetivas com o outro, sentindo-se menos perdido.
O familiar e/ou cuidador representa para a pessoa com demência, um importante canal de referência e reconhecimento, investindo no olhar e ações que possibilitem surgir traços de subjetividade e lampejos de lucidez. Conhecer melhor os sintomas da demência e construir estratégias de intervenção auxiliam a duas partes.
O idoso deve poder ter acesso ao espelho e ser reconhecido neste com palavras e gestos desde o início do processo demencial, e mesmo nos casos mais avançados, a não ser que esteja em crise, porque ainda tem um corpo capaz de sensações, difíceis de ser representados pela linguagem. É importante não afastar a possibilidade de que ainda se represente de alguma forma, nesta relação de identificação com a imagem, atenuando a progressão das perdas. Quando, por exemplo, vê a imagem da própria mãe no espelho, no lugar dele é como um apaziguamento, um encontro, que a construção delirante possibilitou que ocorresse. Ou uma resposta agressiva ao sentir-se perseguido pela própria imagem ao ver-se como um estranho no espelho, anulado, a mercê do outro invasivo ataca para se defender. É difícil presenciar falas sem sentido, mas é um recurso que temos para apaziguá-los psiquicamente, e se pudermos participar do delírio reconhecendo e resolvendo sua angústia, será ainda melhor.
Apesar de todas as perdas nessa desestruturação, esquecendo muitas vezes até do nome próprio, há um sujeito do inconsciente revelado nos pequenos gostos, na raiva, lágrimas e sorrisos que ainda podemos precipitar e compartilhar.
Ana Lucia Esteves/Psicanalista
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