Depressão: mal-estar social da atualidade
"Nem a juventude sabe o que pode,nem a velhice pode o que sabe." José Saramago
A
maneira como entendemos e tratamos a “depressão” muda dependendo
da época histórica em que vivemos. Durante anos, o mal-estar e as
tristezas cotidianas atravessavam algumas fases difíceis de nossa
vida, que, com o tempo, apoio familiar e vida social, eram
ultrapassadas.
No
entanto, nos anos 90 mudou radicalmente a forma de diagnosticar e
tratar o sofrimento psíquico, sob o protesto de profissionais e
associações no campo da saúde mental. As fases de tristeza, que
anteriormente faziam parte do cotidiano, hoje são classificadas
pelos manuais psiquiátricos como uma doença mental, transformando o
sofrimento psíquico em uma falha no cérebro a ser remediada.
De
182 classes de distúrbios nos anos 70, com o último manual (DSM-5)
chegamos a mais de 376 patologias clínicas. Para cada nova
patologia, é aberto um novo mercado na indústria farmacêutica para
dar conta da demanda.
O
afeto depressivo sempre foi considerado um estado emocional, e não
uma entidade clínica, resultando na atualidade em uma pandemia
diagnóstica a nível mundial, nos tornando uma grande massa de
“depressivos”.
O
sofrimento psíquico é aliviado quimicamente de forma rápida, e
pouco se trabalha a história subjetiva da pessoa em sua complexidade
para encontrar outras saídas que não seja a depressiva. A medicação
é necessária para aliviar o sofrimento em vários casos, mas não
deve ser uma solução em si mesma, ministrada de forma
indiscriminada para normatizar o mal-estar na sociedade de consumo
contemporânea.
É
uma epidemia diagnóstica porque acontece a generalização de
alguns sintomas comuns aplicada a uma grande maioria de
pessoas, além de dificultar o diagnóstico diferencial quando o
afeto depressivo faz parte de um quadro patológico. A depressão não é uma doença mental, mas um sintoma social, visto como uma falha isolada e individual, mas, na verdade, é efeito das mudanças sociais, familiares, tecnológicas e econômicas.
A
ética da psicanálise não compartilha das práticas que fazem da
depressão um universal, pois a clínica visa a singularidade e a
responsabilidade da pessoa em suas questões. O mal-estar psíquico
faz parte da vida em muitos momentos, e, segundo o psicanalista J.
Lacan, a única coisa da qual o sujeito pode
ser culpado é de haver cedido de seu desejo.
A
epidemia diagnóstica da depressão que vivemos na atualidade está
associada diretamente aos aspectos ideológico e de mercado ao sedar
a subjetividade. A vida moderna não tem mais suas normas
estabelecidas pela autoridade dos pais da geração passada, mas na
pressão social da busca de sucesso, felicidade e evitação do
fracasso, ditadas pelo mercado de consumo, da imagem e da
competitividade. Temos cultivado a autossuficiência e o
individualismo nessa
busca em um estresse diário na falta de tempo e de prazer, que nos
frustra e gera angústia.
No
estado depressivo, o corpo se desregula nas dores, fadiga, pouca
energia, sensibilidade aumentada, etc. É como se estivéssemos na
margem de um rio que, sozinhos, tememos navegar. Ocorre o afastamento
dos vínculos sociais, sentimento de inadequação, vergonha e culpa
por seu recolhimento.
Por
que razão uma pessoa entra em um estado depressivo, com o
afastamento das relações sociais, de trabalho e familiar? Talvez
uma renúncia interna, uma recusa a conviver com os desafios da
atualidade, sacrificando seus afetos e desejos que não encontram
espaço de expressão e troca socialmente. O estado depressivo pode
ser entendido como um basta a essa engrenagem social, um recuo
autorizado, uma recusa e um apagamento do desejo.
Nesse
sentido, o abuso dos antidepressivos pode legitimar a depressão como
um modo de vida, sem que a pessoa se implique em seu sofrimento, como
uma reação possível à
inconsistência do mundo contemporâneo. Não se trata de preguiça,
mas de um sentimento que não engana, a angústia, que precisa ser
acolhida e ouvida para ser ultrapassada.
A
tristeza como afeto depressivo revela um desamparo e uma impotência
difícil de expressar em palavras.
É
uma abstenção, um “não dizer” de si, em um recolhimento
perante a vida. O preconceito social segrega e transforma uma
dificuldade emocional em fraqueza e inibição, dificultando pedir
ajuda para falar de si com um amigo, familiar ou terapeuta.
Os
extremos e o incompreensível que temos vivido com a pandemia nos fez
ficar em suspenso, e, com o distanciamento social a
tendência é um aumento importante dos estados depressivos, no temor
do retorno, e de toda a tensão acumulada e pouco sublimada no
distanciamento social. Seria importante que, para além do tratamento
medicamentoso, houvesse espaço para poder colocar em palavras o
sofrimento singular vivenciado, para poder ser resignificado, ao
dar-se a chance da vida ser melhor vivida.
É
importante não nos restringirmos ao diagnóstico de “depressão”
para nos definir como pessoa.
Somos
mais do que um rótulo, somos desejos, sonhos, fantasias e afetos, que, ao serem compartilhados,
dão sentido à
nossa vida.
Ana Lucia Esteves/Psicanalista
www.psicanalisenasaudemental.com.br
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