terça-feira, 11 de março de 2014

Ética E Clínica No Autismo Infantil


“A queda dos ideais fez com que cada vez mais os resultados científicos passassem a ser usados como argumento de autoridade. Contudo, nem tudo pode ser mensurável, nem tudo pode ser convertido em evidência.”

Marcelo Veras


Após o nascimento o sistema neurológico do bebê ainda está em formação.  A percepção e reação aos estímulos externos ocorrem sem que tenha consciência de si próprio, ou seja, ainda não se reconhece como o sujeito de suas ações e sensações. No entanto, antes de nascer o filho já apresenta uma existência, quando é nomeado no desejo dos pais, ocupando um lugar no discurso familiar.

O nascimento em si é uma crise primordial que se apresenta ao psiquismo, onde se instala a marca de uma relação biológica interrompida. A placenta  como uma parte de si que perde ao nascer, assim como o seio materno em sua função de corte, simbolizam o objeto perdido, instauram um vazio, um buraco a ser preenchido de um objeto jamais reencontrado e sempre substituído. Jacques Lacan fala de um reencontro com o signo de uma repetição impossível, como a busca incessante no Outro do que falta em nós mesmos.

De acordo com Sigmund Freud, ocorre uma perda da libido que induz o sujeito a buscar fora de si mesmo uma completude. Podemos pensar no mal estar da civilização quando diz que o prazer que se busca nunca será completo, pois sempre faltará algo. Isto nos remete ao nosso mundo contemporâneo com a ilusão do corpo/imagem perfeita ou da tal “felicidade”, ofertada pelo mercado, mas nunca alcançada.

A metáfora do espelho é vital na constituição do sujeito, num circuito pulsional onde a imagem do corpo vai sendo construída nas trocas corporais, gestos e na voz que o adulto vai recobrindo de sentido. O desamparo de um recém-nascido para além do orgânico é fundamentalmente um desamparo simbólico, quando começa a habitar marcas, traços e caminhos oferecidos pelo adulto em busca de satisfação e reconhecimento. Assim vai se introduzindo na cultura, constituindo sua subjetividade inicialmente através do Outro primordial materno e, posteriormente,  na interdição paterna  representará a realidade, a relação no mundo.

Ocorre que no autismo infantil este processo de constituição do psiquismo, nos primeiros anos de vida, se encontra bloqueado numa blindagem que não torna possível a conexão e relação com o desejo do Outro, defendendo-se da linguagem e do mundo.  É como se não houvesse objeto perdido, encontra-se restrito ao organismo biológico, com seu corpo constituído apenas como uma superfície refratária a trocas, sem percepção de si e impossibilitado de constituir um corpo pulsional. 

Além do corpo físico há uma corporeidade pulsional, um circuito de força que possibilita a construção da imagem corporal que a criança autista não consegue alcançar. Há uma força que não se deixa apreender entre o corpo e o psiquismo e que precisa representar-se encontrando uma expressão simbólica, caso contrário vai se repetir, sem espaços perdidos ou bordas a serem inscritas.

Há uma recusa do Outro, que é sentido como invasivo e ameaçador. Recusa do olhar, do alimento, do corpo e principalmente da voz como uma trava em todos os circuitos pulsionais, numa defesa incessante. Seus atos que aparentam não ter sentido, diminuem sua agitação e angústia. 
Em sua relação com os objetos não aparece o brincar, mas um manejo de encher e esvaziar que se repete de forma compulsiva, e as séries em um contato visual tão próximo que chega a colar com o objeto.     
O mutismo não se relaciona a uma incapacidade fisiológica ou a um déficit, mas a uma impossibilidade de enunciação. 
A criança apresenta-se como objeto de cuidados, fracassando em sua enunciação e não surgindo como sujeito do inconsciente.

A causa é desconhecida e o aumento de sua incidência na atualidade talvez possa relacionar-se  às mudanças na subjetividade contemporânea. Os aspectos neurológicos apontados pela neurociência permanecem apenas como uma possibilidade não demonstrada. O autismo não é localizado em exames de sangue ou cerebrais, pois o diagnóstico é clínico, nos sintomas que se apresentam.
 
Com o DSM-5 (2013), o espectro autista se transforma em um transtorno do neuro-desenvolvimento, que prioriza a adaptação cognitiva em detrimento da complexidade psíquica e apaga o sujeito a ser trabalhado subjetivamente, visando especialmente a adequação do comportamento. O efeito é a patologização da infância, epidemia diagnóstica de autismo, medicalização crescente de crianças e tratamentos adaptativos que automatizam o comportamento. Abordagem divulgada nas mídias, que propaga uma falha no cérebro que não está comprovada pela  ciência, treinando crianças sem levar em conta as causas, os afetos singulares e o entorno familiar tão importantes para o tratamento.
Penso que a intervenção com crianças autistas deva partir das produções enigmáticas, sem sentido, repetitivas que são formas próprias de sua tentativa de comunicação. A partir daí oferecer um espaço e tempo possíveis para que se dê a possibilidade de uma construção psíquica infantil, que por alguma razão não se constituiu ainda.
É uma aposta ética na possibilidade do surgimento do sujeito/criança, em uma prática clínica que dê condições de poder encontrar saídas próprias  para este estado e gerir as trocas de prazer/desprazer, inicialmente, com sua forma particular de inserção e relação no mundo. 
Há um sujeito a ser escutado e reconhecido em seu modo singular de funcionamento, da expressão no corpo, humor e comportamento, revelando um sofrimento psíquico. 
Uma criança a ser tratada, e não treinada  para adaptar-se socialmente.

J. C. Maleval cita em Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire: “(...) Se insistem nas coisas que vocês consideram normais, encontrarão frustração, decepção, ressentimento, inclusive raiva e ódio. Se se aproximam respeitosamente, sem preconceitos e abertos a aprender coisas novas, encontrarão um mundo que jamais imaginaram”.


Um comentário:

  1. Primeiro quero avisar que o meu teclado sueco, pois falta algumas consoantes do alfabeto português.

    Parabéns Ana Lucia, Muito interessante o artigo que aborda com precisão o desenvolvimento infantil da crianca sem autismo e a diferenca da crianca com autismo. De forma que facilita a compreensão do artigo e para melhor entendimento para o leitor.

    Moro na Suécia, trabalho nessa area desde 1989, primeiramente trabalhei direto em escolas e depois em instituicões em contato direto com o autista. Hoje trabalho como supervisora de casos, palestrante e tbm no cargo responsável pela qualidade das instituicões no municipio de Solna. Proximo a Estocolmo.

    Lendo este artigo, percebi a semelhanca de como vemos o autismo. O espectrum autismo é um diagnóstico neuro psiquiátrico.
    Aqui na Suécia se trabalha na linha mais adaptativa, análises das funcões e o encontro c as mesma. No artigo acima, fiquei feliz quando li "tratamentos adaptativos que apoiam os deficits". Sim, é por ai mesmo, e o "como" é o mais importante. Ou seja , devemos nos neutralizar sem expectativas, sem cobrancas quando nos comunicamos com o autista.
    O metodo é ...Temos que ir até ele, e não ele a nós. Só assim poderemos ter sucesso nessa comunicacão. Parece fácil, mas isso é muito mais complexo do que se imagina. Pois tbm temos nossos impulsos e expectativas inconscientes. O ABA e o Teacch é um metodo muito eficaz e tenho visto grandes resultados positivos no trabalho com autistas. Mas tem muitos outros métodos que oferecem gde progresso tbm.
    Minha intencão nesse comentário é estimular diálogo com os leitores além de dar um feedback para autora Ana Lucia pelo artigo muito bem elaborado e informativo e quem sabe provocar uma reflexão de como completar o artigo. Onde a intencão seje a mesma... "Informacão sobre o assunto".
    Dicas p ser refletidas nesse artigo. Por exemplo:
    1- Pensar em ara quem se dirige esse artigo. (Linguajar acadêmico ou mais simples?)
    2- O Layout pedagógico talvêz facilitaria a leitura. Estimulo!
    3- O como? Algo sobre os metódos que se recomendar
    4- Literatura que recomendaria (talvêz)
    5- Ou referências literarias do texto
    6- No inicio do artigo aborda a diferenca das criancas com e sem autismo. Talvêz o motivo do autismo e um curto comentário sobre os outros diagnóticos que incluem no Autismo espectra". Muito importante. Assim daria uma visão geral do que é o autismo, de onde vem e o que acompnha nesse diagnóstico. Uma vêz que a rúbrica é etica e clinica no autismo.

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