terça-feira, 28 de julho de 2020

DEPRESSÃO: MAL-ESTAR SOCIAL DA ATUALIDADE




Depressão: mal-estar social da atualidade           

"Nem a juventude sabe o que pode,nem a velhice pode o que sabe."  José Saramago                                                   

A maneira como entendemos e tratamos a “depressão” muda dependendo da época histórica em que vivemos. Durante anos, o mal-estar e as tristezas cotidianas atravessavam algumas fases difíceis de nossa vida, que, com o tempo, apoio familiar e vida social, eram ultrapassadas.

No entanto, nos anos 90 mudou radicalmente a forma de diagnosticar e tratar o sofrimento psíquico, sob o protesto de profissionais e associações no campo da saúde mental. As fases de tristeza, que anteriormente faziam parte do cotidiano, hoje são classificadas pelos manuais psiquiátricos como uma doença mental, transformando o sofrimento psíquico em uma falha no cérebro a ser remediada.
De 182 classes de distúrbios nos anos 70, com o último manual (DSM-5) chegamos a mais de 376 patologias clínicas. Para cada nova patologia, é aberto um novo mercado na indústria farmacêutica para dar conta da demanda.
O afeto depressivo sempre foi considerado um estado emocional, e não uma entidade clínica, resultando na atualidade em uma pandemia diagnóstica a nível mundial, nos tornando uma grande massa de “depressivos”.
O sofrimento psíquico é aliviado quimicamente de forma rápida, e pouco se trabalha a história subjetiva da pessoa em sua complexidade para encontrar outras saídas que não seja a depressiva. A medicação é necessária para aliviar o sofrimento em vários casos, mas não deve ser uma solução em si mesma, ministrada de forma indiscriminada para normatizar o mal-estar na sociedade de consumo contemporânea.
É uma epidemia diagnóstica porque acontece a generalização de alguns sintomas  comuns aplicada a uma grande maioria de pessoas, além de dificultar o diagnóstico diferencial quando o afeto depressivo faz parte de um quadro patológico. A depressão não é uma doença mental, mas um sintoma social, visto como uma falha isolada e individual, mas, na verdade, é efeito das mudanças sociais, familiares, tecnológicas e econômicas.
A ética da psicanálise não compartilha das práticas que fazem da depressão um universal, pois a clínica visa a singularidade e a responsabilidade da pessoa em suas questões. O mal-estar psíquico faz parte da vida em muitos momentos, e, segundo o psicanalista J. Lacan, a única coisa da qual o sujeito pode ser culpado é de haver cedido de seu desejo.
A epidemia diagnóstica da depressão que vivemos na atualidade está associada diretamente aos aspectos ideológico e de mercado ao sedar a subjetividade. A vida moderna não tem mais suas normas estabelecidas pela autoridade dos pais da geração passada, mas na pressão social da busca de sucesso, felicidade e evitação do fracasso, ditadas pelo mercado de consumo, da imagem e da competitividade. Temos cultivado a autossuficiência e o individualismo nessa busca em um estresse diário na falta de tempo e de prazer, que nos frustra e gera angústia.
No estado depressivo, o corpo se desregula nas dores, fadiga, pouca energia, sensibilidade aumentada, etc. É como se estivéssemos na margem de um rio que, sozinhos, tememos navegar. Ocorre o afastamento dos vínculos sociais, sentimento de inadequação, vergonha e culpa por seu recolhimento.
Por que razão uma pessoa entra em um estado depressivo, com o afastamento das relações sociais, de trabalho e familiar? Talvez uma renúncia interna, uma recusa a conviver com os desafios da atualidade, sacrificando seus afetos e desejos que não encontram espaço de expressão e troca socialmente. O estado depressivo pode ser entendido como um basta a essa engrenagem social, um recuo autorizado, uma recusa e um apagamento do desejo.
Nesse sentido, o abuso dos antidepressivos pode legitimar a depressão como um modo de vida, sem que a pessoa se implique em seu sofrimento, como uma reação possível à inconsistência do mundo contemporâneo. Não se trata de preguiça, mas de um sentimento que não engana, a angústia, que precisa ser acolhida e ouvida para ser ultrapassada.
A tristeza como afeto depressivo revela um desamparo e uma impotência difícil de expressar em palavras. É uma abstenção, um “não dizer” de si, em um recolhimento perante a vida. O preconceito social segrega e transforma uma dificuldade emocional em fraqueza e inibição, dificultando pedir ajuda para falar de si com um amigo, familiar ou terapeuta.
Os extremos e o incompreensível que temos vivido com a pandemia nos fez ficar em suspenso, e, com o distanciamento social a tendência é um aumento importante dos estados depressivos, no temor do retorno, e de toda a tensão acumulada e pouco sublimada no distanciamento social. Seria importante que, para além do tratamento medicamentoso, houvesse espaço para poder colocar em palavras o sofrimento singular vivenciado, para poder ser resignificado, ao dar-se a chance da vida ser melhor vivida.
É importante não nos restringirmos ao diagnóstico de “depressão” para nos definir como pessoa. Somos mais do que um rótulo, somos desejos, sonhos, fantasias e afetos, que, ao serem compartilhados, dão sentido à nossa vida.

Ana Lucia Esteves/Psicanalista
            www.psicanalisenasaudemental.com.br