A pandemia vai passar e o desafio que nos
impõe é atravessá-la sustentando as incertezas, a sensação de estar perdido, distanciado socialmente, neste corte abrupto e inesperado em nossas vidas. O tempo e
o espaço coletivos mudaram, assim como a maneira que vamos escolher para nos
relacionar com este caos, sem nos perdermos junto a ele.
De repente, tudo saiu do seu lugar e nos
percebemos impotentes diante das informações desencontradas na crise
institucional e econômica, acreditando que, quanto mais souber, mais garantias
vai ter. Apesar de todo este cenário de incertezas, as medidas para a contenção
do vírus devem ser tomadas, e espero que também sejam em direção à
população de baixa renda.
Lá fora, as ruas estão vazias, o comércio
está fechado, o lazer social está cancelado e a distância física e o medo de
uma doença invisível se apresentam. A distância física entre as pessoas vai certamente dificultar a transmissão, mas também restringir o convívio afetivo. O excesso de informação e a ansiedade por
soluções nos assusta e alimenta o medo infundado, podendo gerar pânico, em um terreno fértil de muitas incertezas.
O tempo e o espaço coletivos foram
alterados de forma repentina e em um movimento intenso. Um confinamento que não
é por punição neste caso, mas por prevenção da transmissão do vírus, que altera
o espaço das relações coletivas. É uma mudança da nossa medida do tempo,
contrapondo a aceleração que até então vivíamos de forma autossuficiente,
estimulados pelo mercado e sem tempo para os afetos. A lógica do consumo e da
ciência contemporânea “coisifica” a vida na busca da satisfação em um consumo
sem limites – a busca da felicidade, do prazer e a ilusão de uma satisfação que
nunca será alcançada, pois em nossa constituição subjetiva sempre vai faltar
algo. A falta primordial da separação do corpo materno e todas as outras que
durante a vida temos que ultrapassar para nos localizarmos como sujeitos.
A sensação que nos invade de estarmos sós
e perdidos nos remete ao desamparo infantil. Quando desprotegidos, precisávamos
do outro para nos fazer viver. Hoje, precisamos do outro para dividir nossas
ações e desejos, reconhecendo-nos e construindo nosso modo de viver. É difícil
localizar em nós próprios qual o sentido subjetivo da vida que levamos, o que
temos escolhido e as ações que fazemos para ir de encontro a nossos desejos.
Uma das queixas recorrentes que encontramos na clínica é o sofrimento de
solidão permanente, mesmo estando no meio laboral, social ou familiar.
O lado positivo desta crise é a
possibilidade de nos relacionarmos coletivamente, mesmo que à distância. Não
devemos nos fazer sozinhos neste momento, precisamos alterar a rotina, fazer
escolhas e reativar nossos desejos, repensando nosso mundo particular e nossa
relação com as coisas e as pessoas. Agora começamos a ver nossos vizinhos em
uma colaboração à distância, os conflitos familiares suspensos no chamado e no
oferecimento de ajuda, o uso da tecnologia para nos vermos e para conversarmos.
A integração nos faz caminhar e sentir acompanhados nesta travessia, pois o
isolamento temporário não precisa ser solitário. O que atrapalha é um
imaginário inflado, onde acumulamos muitos pensamentos e questões que ainda não
temos respostas – precisamos aprender a usar nosso tempo a nosso favor. Querer
saber do futuro hoje é muito difícil. Com tantas perdas e incertezas, é melhor
investir no agora, no hoje. Voltar-se para o próprio corpo, nos percebendo
melhor, quando podemos diferenciar cansaço de um mal-estar geral ou estado
depressivo, quando nos exercitamos e sentimos nossa energia e um esvaziamento
dos pensamentos que alimentam nosso mal-estar.
É muito importante agora que centremos nossa
atenção em nós mesmos, neste distanciamento que pode nos fazer viver uma
experiência de amadurecimento e mudança de valores e comportamento. Quando a
esfera pública invade a particularidade de cada um de nós, quando nos deixamos
engolir pela crise, deixamos de nos responsabilizar pela nossa existência e
entramos em um barco desgovernado, onde podemos perder a referência de quem somos e o que desejamos para nós nesta vida.
"Vosso mau amor de vós mesmos faz do
isolamento um cativeiro."
(Nietzsche)
Ana Lucia Esteves
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