quarta-feira, 25 de março de 2020

VIVER O CAOS TEMPORÁRIO, SEM NOS PERDERMOS JUNTO A ELE


                                                    imagem:M. Boyayan

Viver o caos temporário, sem nos perdermos junto a ele

A pandemia vai passar e o desafio que nos impõe é atravessá-la sustentando as incertezas, a sensação de estar perdido, distanciado socialmente, neste corte abrupto e inesperado em nossas vidas. O tempo e o espaço coletivos mudaram, assim como a maneira que vamos escolher para nos relacionar com este caos, sem nos perdermos junto a ele.

De repente, tudo saiu do seu lugar e nos percebemos impotentes diante das informações desencontradas na crise institucional e econômica, acreditando que, quanto mais souber, mais garantias vai ter. Apesar de todo este cenário de incertezas, as medidas para a contenção do vírus devem ser tomadas, e espero que também sejam em direção à população de baixa renda.

Lá fora, as ruas estão vazias, o comércio está fechado, o lazer social está cancelado e a distância física e o medo de uma doença invisível se apresentam. A distância física entre as pessoas vai certamente dificultar a transmissão, mas também restringir o convívio afetivo. O excesso de informação e a ansiedade por soluções nos assusta e alimenta o medo infundado, podendo gerar pânico,  em um terreno fértil de muitas incertezas.

O tempo e o espaço coletivos foram alterados de forma repentina e em um movimento intenso. Um confinamento que não é por punição neste caso, mas por prevenção da transmissão do vírus, que altera o espaço das relações coletivas. É uma mudança da nossa medida do tempo, contrapondo a aceleração que até então vivíamos de forma autossuficiente, estimulados pelo mercado e sem tempo para os afetos. A lógica do consumo e da ciência contemporânea “coisifica” a vida na busca da satisfação em um consumo sem limites – a busca da felicidade, do prazer e a ilusão de uma satisfação que nunca será alcançada, pois em nossa constituição subjetiva sempre vai faltar algo. A falta primordial da separação do corpo materno e todas as outras que durante a vida temos que ultrapassar para nos localizarmos como sujeitos.

A sensação que nos invade de estarmos sós e perdidos nos remete ao desamparo infantil. Quando desprotegidos, precisávamos do outro para nos fazer viver. Hoje, precisamos do outro para dividir nossas ações e desejos, reconhecendo-nos e construindo nosso modo de viver. É difícil localizar em nós próprios qual o sentido subjetivo da vida que levamos, o que temos escolhido e as ações que fazemos para ir de encontro a nossos desejos. Uma das queixas recorrentes que encontramos na clínica é o sofrimento de solidão permanente, mesmo estando no meio laboral, social ou familiar.

O lado positivo desta crise é a possibilidade de nos relacionarmos coletivamente, mesmo que à distância. Não devemos nos fazer sozinhos neste momento, precisamos alterar a rotina, fazer escolhas e reativar nossos desejos, repensando nosso mundo particular e nossa relação com as coisas e as pessoas. Agora começamos a ver nossos vizinhos em uma colaboração à distância, os conflitos familiares suspensos no chamado e no oferecimento de ajuda, o uso da tecnologia para nos vermos e para conversarmos. A integração nos faz caminhar e sentir acompanhados nesta travessia, pois o isolamento temporário não precisa ser solitário. O que atrapalha é um imaginário inflado, onde acumulamos muitos pensamentos e questões que ainda não temos respostas – precisamos aprender a usar nosso tempo a nosso favor. Querer saber do futuro hoje é muito difícil. Com tantas perdas e incertezas, é melhor investir no agora, no hoje. Voltar-se para o próprio corpo, nos percebendo melhor, quando podemos diferenciar cansaço de um mal-estar geral ou estado depressivo, quando nos exercitamos e sentimos nossa energia e um esvaziamento dos pensamentos que alimentam nosso mal-estar.
É muito importante agora que centremos nossa atenção em nós mesmos, neste distanciamento que pode nos fazer viver uma experiência de amadurecimento e mudança de valores e comportamento. Quando a esfera pública invade a particularidade de cada um de nós, quando nos deixamos engolir pela crise, deixamos de nos responsabilizar pela nossa existência e entramos em um barco desgovernado, onde podemos perder a referência  de quem somos e o que desejamos para nós nesta vida.

"Vosso mau amor de vós mesmos faz do isolamento um cativeiro."
(Nietzsche)

Ana Lucia Esteves